top of page

As artimanhas de um narrador



Minha experiência como autor de textos em prosa vem, ao longo dos anos, consolidando em mim a convicção de que não sou o narrador. Isso ficou patente durante o processo de criação de meu recente romance, Amor e guerra em Vale Manso.


O leitor pode ter a impressão de que quem conta toda a história é o escritor. Bem, é verdade que o escritor dá o pontapé inicial, mas, a partir daí, "alguém" acaba assumindo o comando. Pelo menos é isso o que ocorre comigo. O fato é que me surge uma ideia, quase sempre um tanto vaga, eu abro o computador e começo a digitar algumas linhas para ver no que vai dar. Um embrião vai se formando. Eu me distraio e já não sou eu quem conta a história. Um narrador “estranho” se intromete. Estranho entre aspas, pois sei que ele também mora em mim. Mora em mim como todas as personagens, pois acredito que a humanidade inteira mora em cada célula de todos nós. Mas esse narrador que se intromete impõe personagens e eventos alheios a minha vontade consciente.


Foi assim que, em Amor e guerra em Vale Manso, o protagonista Gabriel foi se envolvendo em peripécias fora de meu controle; personagens e situações insólitas se apresentaram, e o narrador “estranho”, sem cerimônia, assumiu o comando da narrativa.


Asdrúbal Campobello, por exemplo, um filósofo de rua, desses bem malucos, foi introduzido na história (Não se enterram pessoas, enterram-se casulos é uma de suas célebres frases); Sô Juquinha, um curandeiro e vidente pra lá de esquisito, teve papel importante em vários momentos; Júlia, a moça que adorava amar no mato, embora já tendo participação previamente garantida por mim na história, trouxe para a trama elementos que eu não previa e que foram decisivos para o incremento da narrativa.


Aliás, agora me pergunto: até que ponto esse narrador estranho tem a autonomia que a ele venho atribuindo? Talvez mesmo ele se veja enleado pelas demandas das personagens que reivindicam participação na história. Mas, se isso ocorre, o problema é dele. Quanto a mim, fico feliz quando ele está em atividade, pois é assim que a narrativa flui. Quando me sinto travado em minha escrita, já sei: fui abandonado pelo narrador estranho. O processo criativo fica truncado. É o escritor tentando fazer ficção sem a presença do narrador.


Da primeira versão de Amor e guerra em Vale Manso, escrita nos anos 1980, não restou quase nada; mudaram-se os cenários, mudou-se a maioria das personagens, a linha mestra da trama e, consequentemente, o título. Hoje sei que o narrador era outro, e é claro que ele era outro porque eu era outro. Se hoje não sou o mesmo, necessito de outro narrador "estranho" que mora em mim; se sou outro, suscito outras personagens que também moram em mim; pelo mesmo motivo, outras demandas são impostas e precisam fazer parte da narrativa. E eu não dispenso as artimanhas do narrador estranho.


Meu livro Amor e guerra em Vale Manso está disponível no site paginaseditora.com.br



56 visualizações9 comentários

Posts recentes

Ver tudo
bottom of page